quinta-feira, 31 de maio de 2007

Culturas de Greve em Portugal e no Brasil

Elísio Estanque Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Professor convidado da USP – São Paulo tirado do blog da ocupação USP (link ao lado)

Portugal está em greve e o mesmo acontece no sector universitário paulista. A greve é, disseram uns sociólogos citando Clausewitz, “a continuação da negociação por outros meios”. Acho que esta é uma formulação adequada, sobretudo quando as greves ocorrem num regime democrático, no qual é suposto uma permanente negociação de interesses entre os diferentes actores do conflito social e político. É de conflito que se trata. Mas tal como o conflito não acaba com o fim da greve, a negociação não pode acabar com o seu início. A negociação continua por outros meios, na medida em que o conflito aberto trata sobretudo de mostrar o peso relativo de cada uma das partes nele envolvidas, procurando alterar a correlação de forças. E as paralisações do trabalho mais as manifestações de rua têm um custo não só económico mas também político que pode ser demasiado elevado.

Em Portugal, desde os anos 70 que as greves se foram tornando impopulares. Quer no discurso público quer no imaginário popular foi-se instalando a ideia de que só fazem greve os que “não gostam de trabalhar”, os que só pensam nos seus interesses, supostamente indiferentes aos “interesses do país”. Passámos por um período em que a cultura de greve se inscrevia numa expectativa colectiva de que a greve era parte de um processo mais vasto, era uma etapa da consciencialização, visando a sociedade socialista, que estaria no final do caminho. Só que, entretanto, foi a utopia que se perdeu no caminho e a greve passou a limitar-se à defesa de regalias materiais. Porém, quem tinha mais passou a estar menos disposto a aderir, e as greves não só passaram a mobilizar menos como se foram limitando aos sectores mais protegidos.

A cultura de greve deixou de ser emancipatória para se tornar corporativa. Com tudo isto chegámos a um ponto em que se bateu no fundo. Ou seja, os sectores estáveis, a que alguns chamaram “privilegiados”, deixaram de o ser e estão todos a tornar-se precários. Este é talvez o ponto em que, outra vez, os que antes pensavam só em si próprios percebem a importância da aliança com os restantes, e os mais precarizados começam a perceber que a cultura do “deixem-nos trabalhar”, o sacrifício necessário para garantir o mínimo de bem-estar ou mesmo para “salvar o país da crise”, não passou de um imenso logro. O benefício da dúvida que muitos deram a Sócrates há dois anos não valeu a pena.

Também no Brasil o rastilho das greves e do protesto parece ter pegado. No início parecia uma brincadeira de crianças. Há quase um mês que os estudantes ocupam a Reitoria da USP em protesto pela quebra abrupta da negociação com a reitora e em luta contra um conjunto de decretos do governo de José Serra, que visam reduzir a autonomia da universidade e talvez empurrar a instituição – a melhor do país – para um processo de privatização a prazo. Pouco depois, os funcionários declararam greve, seguindo-se-lhes os professores. Piquetes, paralisações e até invasões já se estenderam a várias instituições e têm ocorrido manifestações noutras regiões do país. Em São Paulo também os funcionários das Universidades Federais entraram agora em greve. O governador J. Serra dá sinais de hesitação e de recuo. Os grandes média começam a vacilar na sua habitual postura contra a “violência” de quem protesta. As reuniões negociais continuam, aparentemente sem sucesso. E na USP vive-se um “Maio de 2007”, que faz lembrar o de 68, em que a “cultura de greve” é parte do programa de actividades culturais da Reitoria ocupada desde 3 de Maio. Com as aulas paralisadas, os universitários, cunhados de radicais “desordeiros”, estão a dar uma lição às forças organizadas e aos partidos que se acoitam no poder.

O que há, afinal, aqui em comum? Há dois governos que era suposto serem de esquerda e estão a fazer a política do capital e de desprezo pelos que trabalham. De ataque ao Estado e em prol do privado. No caso, é o do Estado de São Paulo que está na berlinda, mas, ao fim e ao cabo, PT e BSDB são agora também aliados no governo central. No Brasil a precariedade é estrutural e as diferenças partidárias são cada vez mais indestrinçáveis. Em Portugal parece que seguimos o mesmo rumo. No momento espera-se que, num e noutro caso, as greves mostrem a importância fundamental da negociação – e do conflito – em democracia. Porque as democracias formais e os tecno-burocratas que as governam não chegam para resolver os problemas.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

25 anos depois, estudante leva a mãe para a invasão

LAURA CAPRIGLIONE da Folha de S.Paulo E de repente, de surpresa, um novo movimento estudantil surgiu na Universidade de São Paulo. Ele tem uma cara mulata como não se via nos anos de chumbo da ditadura militar. Ele dá as costas às entidades tradicionais de estudantes, como a UNE, a UEE e o DCE-Livre. Ele desdenha de líderes carismáticos (em vez disso, todo mundo manda, e ninguém manda). Ele cultiva a sério o apartidarismo, quebrando a hegemonia política de partidos como o PT, PSOL e PSTU, que já foram manda-chuvas no pedaço. E, esquisitíssimo, ele faz questão de cuidar dos jardins com tanto esmero quanto da mobilização. Esse novo movimento estudantil apareceu há 20 dias, quando 120 alunos dirigiram-se à reitoria da universidade para entregar um documento com reivindicações. Como não encontraram a reitora Suely Vilela, que estava viajando, resolveram invadir o local --assim, meio na louca. E a coisa começou a crescer, sem controle, e sem interlocutores. União Nacional dos Estudantes, que foi presidida pelo atual governador José Serra nos idos de 1964, União Estadual, Diretório Central dos Estudantes e muitos centros acadêmicos, as organizações estudantis tradicionais nem são mencionadas nas conversas. Não existem para essa mobilização, senão como "obstáculos" que foram necessários ultrapassar. O aluno de letras Marcelo explica: "Eles foram contra a ocupação da reitoria e ficaram negociando nas nossas costas". "Caminhando e cantando" Ontem, o carro de som estacionado bem na frente da invasão tocava a trilha sonora do pessoal. "Eu sou a mosca que pousou na sua sopa" e "Plunct, plact, zum, não vai a lugar nenhum", as duas canções de Raul Seixas, alternavam-se com todas as músicas antigas de Chico Buarque, com especial destaque para "Apesar de Você", e "Pra não Dizer que não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, hinos da resistência democrática nos anos do regime militar. Túnel do tempo? Quem, há 25 anos, em 1982, quando a reitoria da USP também foi invadida, imaginaria um estudante levando sua mãezinha para ver como os companheiros se comportavam bem na luta? Pois foi isso o que o aluno Luiz, do segundo ano de história, fez: levou a mãe, conflito geracional nenhum, para checar como tudo estava organizado na reitoria, apesar da invasão. "Ela gostou muito do que viu", garante ele. Ontem, em visita ao prédio ocupado, os estudantes que ciceroneavam a reportagem da Folha fizeram questão de mostrar os banheiros da reitoria. "Tudo limpinho, você está vendo", disseram. Estava mesmo. Os jardins internos do prédio, de tão bem cuidados, mereceram elogios do jardineiro responsável, que foi preocupado ao local só para checar as perdas e danos da invasão. Em vez disso, fez questão de parabenizar o aluno que o estava substituindo tão bem. O pessoal faz cara de mau quando alguém da "imprensa burguesa" (como muitos consideram, por exemplo, a Folha) pede entrevista. Dura pouco. Foi só a comissão de mobilização avisar que mais uma assembléia ia começar para um grupo de jovens músicos (duas flautas doces, uma clarineta, um violino, um cavaquinho e dois pandeiros) começar a tocar "Se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar". Cinco grandes rodas concêntricas, formadas por adolescentes de mãos dadas, começaram a dançar. Então vieram um Caetano velho, ainda bucólico, "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, e o hit "Apesar de Você", sempre ele. Aquecida pela coreografia, a assembléia, então, finalmente se iniciou. Cama coletiva Há muitos negros na invasão, como não se via na de 25 anos atrás. Se antes ingressavam na universidade 4.000 novos alunos por ano, hoje são 10 mil. Cabelões black de todas as formas, os universitários do grupo "OcupAção Afirmativa" refletem a abertura pela qual passou a USP no último quarto de século. Mas eles querem mais. O politicamente ultracorreto domina. No amplo saguão que antecede a sala do Conselho Universitário, onde estão distribuídos os colchões em que os invasores dormem, tudo é de todos. A estudante Alba Marcondes explica: "Chegou, encontrou o colchão vazio, qualquer um, então pode se deitar". Bebidas alcoólicas e drogas não entram no prédio. Quem quiser, que consuma fora. Cigarros só em locais abertos, como o saguão da reitoria, ao lado do busto de Nicolau Copérnico, em que foi afixado o cartaz: "Também apóio a ocupação". Todos comem a mesma comida, feita por outra comissão de alunos. Ontem, o cardápio do almoço foi arroz branco, batata cozida e lingüiça frita. Acompanhava um minicopinho (desses de café) de suco de caju. Ninguém reclamava. E sexo? Luís conta que um velho militante de 25 anos passados, ao visitar a invasão atual, notou um certo ar "careta" nos meninos e perguntou "Pô, nem sexo, nem drogas, nem rock and roll? Que merda vocês estão fazendo?" Marcelo, aluno da escola de ciências sociais, emenda, pensativo: "A gente não sabe muito o que é ser rebelde. Só sabe que é contra o decreto do Serra. O resto, estamos aprendendo". Clandestinidade Lá fora, a USP, naquele que é o seu centro geográfico de poder, o conjunto da reitoria, parece o centro comunitário de um pedaço da periferia. O prédio em obras, o matagal crescendo nos canteiros do conjunto residencial (onde moram alunos carentes), as lonas improvisadas, proteção para a chuva, como em um acampamento de sem-teto, os pneus empilhados à guisa de barricada, as muitas pichações ("Ocupe a Reitoria que Existe em Você" é uma delas), uns tantos bêbados em volta, um pequeno comércio de doces e camisetas. Os estudantes em tempos de democracia não gostam de mostrar rostos nem declinam nomes. Identificam-se por um prenome, às vezes confessando, antes que se pergunte, que é falso. Temem punições administrativas, que podem chegar à expulsão do quadro discente. Há 25 anos, a ditadura ainda existia no país --era o governo do general João Baptista Figueiredo (1918-1999)--, mas a confiança do movimento estudantil era tamanha que todos queriam aparecer. Um grupo de alunos do Instituto de Física, então uma das escolas mais ativas da USP, como lembra o ex-aluno Olavo Tomohisa Ito, 48, hoje professor universitário, fez questão de "tomar posse" da sala do Conselho Universitário, afixando, gigantesca, uma faixa com os dizeres "Espaço Marcelão", em homenagem a um colega que até pelo tamanho não conseguia se manter incógnito. Ninguém queria mais a clandestinidade. Nesses dias de invasão, uma parte da turma de 25 anos atrás fez questão de ir ver como os meninos de hoje estão levando a coisa. Julio Cesar, ex-aluno de ciências sociais e atualmente na Faculdade de Educação, ontem ajudava o pessoal da comissão de alimentação. Outros da mesma época levavam doações de mantimentos. http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u19559.shtml

terça-feira, 22 de maio de 2007

Comunicado a Sociedade

São Paulo, 21 de maio de 2007

do site http://ocupacaousp.blog.terra.com.br Os estudantes da USP que ocupam a reitoria desde o dia 03/05, reunidos em plenária, decidiram vir a público prestar esclarecimentos com relação às informações veiculadas na imprensa sobre o movimento, assim como nossas resoluções sobre as reuniões propostas pela reitoria e a Polícia Militar. Nosso movimento defende a educação pública contra os ataques do governador José Serra e a conivência das reitorias das Universidades Estaduais paulistas. É por isso que somos contra os decretos assinados pelo governador no início deste ano, que ferem não somente a autonomia de gestão financeira, mas principalmente comprometem o caráter reflexivo e crítico que deve caracterizar ensino, pesquisa e extensão, na medida em que privilegiam as “pesquisas operacionais” - aquelas que favorecem o lucro privado em detrimento dos interesses da maioria da população. Exemplo claro disto é a alocação da FAPESP na Secretaria de Desenvolvimento, separada das Universidades. Reiteramos que estes decretos vieram agravar o processo de sucateamento da educação pública, já manifestado nos vetos ao aumento de verbas para as Universidades. Ocupamos a reitoria em protesto contra seu silêncio e omissão, para sermos escutados e abrirmos o debate com a sociedade. Fomos acusados de “vândalos” e “violentos” por termos danificado uma porta. Violentos não seriam os governos que impedem a maioria da população de ter acesso à Universidade Pública, que é elitista e racista por responsabilidade dos mesmos que hoje nos criminalizam? Violentos não seriam os que têm punido juridicamente manifestações políticas, como esta ocupação? Violentos não seriam os que destroem a educação pública e reprimem os que querem defendê-la? Violenta não seria a polícia que reprime, dia a dia, a população pobre, negra, os trabalhadores e os movimentos sociais? Frente a toda essa violência, uma porta não é nada. José Serra nos chamou de “mentirosos e desinformados” e declarou que a autonomia não foi ferida. É um ataque lamentável, como os que ele mesmo desfere contra o ensino público e que devem ser repudiados pela população. A respeito da gestão das verbas da Universidade, Pinotti em entrevista à Folha de S. Paulo declarou: “Suponha que haja um remanejamento maluco. Cabe ao governador dizer não.” Isso fere claramente a autonomia, pois deixa a critério do governo o que é “maluco”. E sabemos que “maluco” para eles é investir na Universidade Pública, gratuita e de qualidade. É falsa a afirmação de que somos contra a transparência das contas da Universidade. Defendemos a publicização de toda a movimentação financeira interna da Universidade, o que também deve incluir as contas das fundações de direito privado, que usurpam o dinheiro e a estrutura da Universidade Pública para beneficiar um punhado de grandes empresas privadas e a burocracia acadêmica. Porém, a mera prestação de contas é insuficiente. A USP já disponibiliza os dados de seus gastos para a toda a população na internet. O Siafem (Sistema Estadual de Controle e Registro de Gastos), ao contrário, não é aberto ao público (é necessária uma senha para acessá-lo, disponível apenas para o Judiciário e o Legislativo). O argumento da transparência é falso, trata-se de uma centralização das decisões e informações. O mesmo governo que se declara a favor da transparência não publicou a previsão e a arrecadação do ICMS dos meses de março e abril, argumento dado para a não definição do reajuste salarial dos servidores. E mais, queremos que o destino das verbas seja definido não somente por uma minoria de professores, como é hoje, mas democraticamente, pela comunidade universitária em diálogo com a população, para que não esteja de acordo somente com os interesses de uma minoria. Combatemos a concepção que trata como “privilégios” direitos sociais inalienáveis, como educação, saúde e previdência. O resultado deste processo é que direitos sociais que deveriam ser garantidos para todos são transformados em mercadoria que só alguns podem adquirir. É por isso que dizemos à população que o discurso do governo “contra o elitismo da Universidade” é oportunista. Não somos nem “privilegiados” nem “corporativistas”. Defendemos a universidade dos ataques que vem sofrendo e lutamos para transformá-la, para que seja de fato pública, tanto em seu acesso e permanência à população que mais necessita, quanto no caráter do conhecimento nela produzido. É por isso que chamamos a sociedade para lutarmos juntos pela real democratização das Universidades Públicas. Estão agendadas duas reuniões para hoje (21/05/2007): uma com a reitoria e outra chamada pelo Comandante da Tropa de Choque da Polícia Militar. Frente a isso, declaramos que: 1 – Apoiados por professores, pela Assembléia de estudantes e de funcionários da USP, dentre outros segmentos da sociedade civil, diversas Universidades e movimentos sociais reiteramos nosso repúdio a qualquer punição, seja ela de caráter administrativo ou judicial, contra qualquer integrante do movimento de ocupação da reitoria da USP, sobre o qual recaia qualquer implicação processual em razão deste movimento político. 2 – Com relação à reunião com a PM: o que está sendo proposto não se trata de uma negociação. A única negociação possível é com a reitoria. Defendemos a autonomia da Universidade e negociar com a PM seria um ataque a esta autonomia que estamos defendendo. Por isso, não participaremos da reunião e mandaremos apenas representantes jurídicos para entregar oficialmente este comunicado e defender nosso movimento e nossas reivindicações. É importante lembrar que reintegrações de posse com uso de força policial não ocorrem na USP desde os obscuros anos da ditadura militar, quando centenas de pessoas foram presas e torturadas por lutar pela democracia na Universidade e no país. Não vamos compactuar com uma intervenção que reinstitui práticas ditatoriais e, se houver uso da força policial, resistiremos. 3 – Com relação à negociação com a reitoria e nossa pauta: sempre estivemos abertos à negociação, por isso aceitamos a reunião proposta para hoje, às 8h30. Esperamos que a reitoria avance no atendimento às nossas reivindicações, que não são somente moradia e autonomia como a imprensa tem veiculado. Temos uma pauta com 17 pontos, que segue em anexo. Esperamos que a reitoria avance com relação à proposta do dia 08/05, já rejeitada em Assembléia Geral do Estudantes da USP, que contou com mais de 2000 estudantes. Como nossas decisões são feitas democraticamente em fóruns de participação direta, a avaliação do resultado desta reunião será feita na próxima Assembléia Geral dos Estudantes da USP, a se realizar no dia 22 de maio, às 18h, em frente à reitoria. 4 – Chamamos toda a população a participar das nossas atividades, pois nossa luta é em defesa da educação pública. Haverá um ato público no dia de hoje, às 14h, em frente à reitoria, contra a repressão policial e em defesa da educação pública, para o qual chamamos todos os trabalhadores, estudantes, intelectuais, parlamentares, sindicatos, organizações políticas e movimentos sociais, para defendermos a legitimidade da nossa luta. Será realizada no dia 22/05 a Assembléia Geral dos Estudantes da USP. E no dia 23/05, quando nossa greve se fortalecerá com a entrada de outros setores das universidades, nos somaremos ao Dia Nacional de Lutas em defesa dos direitos sociais, com um ato no MASP (Av. Paulista), às 14h. Contamos com o apoio dos que se o opõem à repressão e defendem uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Bento XVI, Celam, Lula e Teologia da Libertação

Em "Comemoração" à visita do papa, publico aqui uma entrevista de Leonardo Boff sobre o pontífice. fonte: site do Leonardo Boff (em "links", ao lado) Publicada na revista forum (redacao@revistaforum.com.br) Bento XVI, Celam, Lula e Teologia da Libertação

O papa Bento XVI é diferente do cardeal Ratzinger?

R. Eu pensava que iria ser diferente. Mas vejo que no fundo é o mesmo. Um Papa doutrinário que ainda pensa ser o Cristianismo a única via para a salvação. As demais vias são todas incompletas e não terminam em Deus. Geralmente quando alguém chega ao ponto mais alto do poder, se torna mais indulgente e flexível. Com o Papa Bento XVI não ocorreu esta conversão. Ele reafirma a tradicional rigidez do Catolicismo romano com as antipatias que provoca e a evasão de fiéis que saem inconformados com caminhos da Igreja que não são adequados ao nosso tempo. Os cristãos têm o direito de serem contemporâneos em sua fé e não apenas reprodutores de um passado antigo.

Que futuro o senhor projeta para a Igreja com o pontifcado de Ratzinger?

R. Já dá para se ver que ele é um Papa de pura transição. Por isso não possui projeto próprio de Igreja. É o mesmo do de seu antecessor que ele fundamentalmente ajudou a formular: uma Igreja que se constrói para dentro, reforçando sua identidade mas sempre com receios e medos da modernidade, daquilo que chama de relativismo e de politização da fé como a teologia da libertação.

Na ocasião da escolha de Bento XVI o senhor disse que seria difícil "amar o novo papa". Essa opinião ainda se sustenta hoje?

R. O documento que publicou Sacramentum Caritatis sobre a eucaristia contém elementos positivos mas reafirma contundentemente a inflexibilidade da doutrina tradicional sobre questões de moral familiar e sexual. Afasta os divorciados da comunhão, não aceita os preservativos, mesmo para evitar a Aids, nega o "casamento" entre homosexuais e pede que ministros de Estado e legisladores católicos se neguem a votar medidas que conflitam com a doutrina católica. Tais coisas escandalizam e o tornam o Papa no mínimo antipático. Ele não se faz amável por todos estes e por aqueles que valorizam o bom senso e a misericórdia, ausentes em sua posição tradicional.

Como o senhor vê a condenação ao silêncio de Jon Sobino, expoente da teologia da libertação, pelo papa Bento XVI?

R. Eu vejo como uma escaramuça a mais contra a teologia da libertação, a mais viva em todo o Terceiro Mundo. Roma se deu conta de que, no fundo, perdeu a batalha contra a teologia da libertação. Produziram-se dois documentos um claramente contra em 1984 e outro resgatando alguns elementos positivos em 1986. Mas de pouco adiantou. Esta teologia nasceu ao ouvir o grito dos pobres. Esse grito hoje virou clamor. Então ela continua sendo fiel a suas origens, o que irrita o Vaticano. Mas ela não pode fazer outra coisa se quiser ter o mínimo de responsabilidade ética face à miséria na qual vive grande parte da humanidade. Não escutar este clamor é fazer-se socialmente irrelevante e ser simplesmente cínico. A teologia da libertação salva o cristinianismo deste cinismo vergonhoso. Jon Sobrino é um sobrevivente do massacre que dizimou toda sua comunidade de jesuitas em 1989 em El Salvador. É um dos teólogos mais respeitados da teologia mundial exatamente por sempre de novo propôr a urgência de pensar a fé a partir das vítimas e de conclamar a Igreja para que tome a sério seu serviço libertador para com os oprimidos do mundo. Como isso não está nas estratégias centrais do Vaticano e Jon tem boa acolhida por todas as partes, foi enquadrado e silenciado. Batem nele mas visam a Igreja latino-americana para que não tente retomar seus ideais formulados em Medellin (1968) com a libertação, em Puebla (1979) com a opção pelos pobres e em Santo Domingo (1992) com a inculturação nas culturas dos oprimidos.

Como se estabelece hoje a sua relação com a Igreja? Às vezes o senhor evita tratar de certas questões, por quê?

R. Depois que me autopromovi a leigo e foi aceito por Roma, nunca mais fui perturbado pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Minha relação, em termos de opção de vida, continua a mesma: sinto-me dentro da Igreja, como leigo, entretanto mais franciscano que romano. Evito abordar temas de Igreja porque considero que os grandes problemas hoje que movem a humanidadae têm pouco a ver com a Igreja-instituição como a questão ecológica, a devastação dos pobres, a atmosfera de guerra civil mundial, os fundamentalismos e o terrorismo e agora a incerteza quando ao futuro do Planeta ameaçado pelo aquecimento global e as mudanças climáticas inevitáveis. Esta é a verdadeira galáxia de problemas e não as questões, por vezes, ridículas e despistadoras, suscitadas por Roma.

Como se deu exatamente a guinada conservadora da Igreja Católica?

R. O aparato romano chamado Cúria, quer dizer, aquelas instituições responsáveis pela condução da Igreja universal nunca acolheram as reformas feitas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Elas foram derrotadas mas nunca se renderam. Conseguiram se aglutinar, ocupar os principais poderes centrais e impuseram o curso tradicional a toda a Igreja. Eles conseguiram fazer o Papa João Paulo II e agora Bento XVI. Criaram o seu exército de soldados fiéis que são a Opus Dei e outros movimentos conservadores como Communione e Liberazione e em geral os grupos carismáticos. Eles garantem a reprodução do modelo antigo, defasado do mundo contemporâneo.

O cardeal Ratzinger foi realmente o mentor dessa guinada?

R. O então Card. Ratzinger foi o intelectual orgânico desta guinada, o seu formulador e atacante central. Não sem razão disciplinou cerca de 140 teólogos e colocou sob severa vigilância as Igrejas que estão na periferia do mundo e tentam responder aos desafios das realidades conflitivas nas quais vivem. Criou-se o pensamento único na Igreja: o mesmo catecismo universal, o mesmo direito canônico para o pólo norte e para os trópicos, o mesmo rito romano ao qual se proibe qualquer inculturação, a mesma doutrina básica extraida dos pronunciamentos papais. Sem liberdade não é possível nenhuma criatividade. Dai a impressão velhista que este tipo de Igreja provoca e a enorme emigação de fiéis que no Brasil signfica 1% a cada ano.

Como está hoje a CNBB e qual é o seu papel atual? Ela é hoje uma entidade conservadora?

R. No pontificado passado ocorreu uma grande mediocrização dos episcopados do mundo inteiro. Para Roma, de fato, o único bispo é o Papa. Os demais bispos desaparecem à sua sombra. E os profetas foram silenciados ou morreram. Esta política de contenção afetou a CNBB que perdeu muito de seu elan. Mas conserva ainda uma reserva de progressismo, especialmente, nas questões sociais como se depreende pelas Campanhas da Fraternidade, pela iniciativa "Grito do Oprimido", pelas pastorais sociais como por terra, teto, saúde e as pastorais dos índios, dos negros e das mulheres marginalizadas. Aqui e acolá surgem vozes proféticas mas este não é o tom geral da CNBB. Ela tem demasidadamente os dois ouvidos voltados para Roma e menos para a realidade do povo crucificado. Mas nunca faltaram bispos progressistas e ligados à libertação.

A Teologia da Libertação ainda se mantém viva? Tem conseguido resistir?

R. A teologia da libertação continua viva naquelas igrejas que tomam a sério a opção pelos pobres e contra a pobreza e que acolhem o desafio que vem da injustiça social. Por isso é forte na América Latina, Africa e Asia. Mas não possui a visibilidade que possui antes porque não é mais tão polémica como um dia foi.

Onde ela ainda é forte e está mais presente?

R. Quando ocorreu o Forum Social Mundial em Porto Alegre há tres anos, houve uma semana antes o Forum Mundial da Teologia da Libertação. Ai estavam representantes, cerca de 300, de todos os Continentes e também do Primeiro Mundo. Ai se pode notar a vitalidade desta teologia. Se ela não tem muito poder, seguramente possui a hegemonia do discurso, pois sobre as grandes questões que afligem a humanidade sempre tem uma palavra a dizer, como por exemplo, sobre o tipo de globalização econômico-financeira que cria milhões e milhões de excluidos, sobre o pensamento único neo-liberal que ameaça a democracia, sobre o fundamentalismo e o terrorismo e sobre questões ambientais que agora põem em risco a sobrevivência da espécie humana.

Como o senhor recebeu o relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) de que o aquecimento é decorrência da ação humana e é praticamente irreversível?O senhor imaginava que a situação já havia atingido esse patamar?

R. Pertenço ao pequeno grupo que escreveu a Carta da Terra, iniciativa mundial animada por Michail Gobachev e alguns membros da ONU que desde 1992 até 2000 mobilizou mais de cem mil pessaas em 46 paises para saber o que se deveria fazer para salvar a Terra e a humanidade da sistemática agressão pelo sistema mundial de produção e consumo. Todos os cenários com os quais trabalhávamos indicavam o desastre que foi agora confirmado pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas. Estimo que os dados fornecidos que apontam para um irreversível aquecimento global com as ameaças aue implicam em termos de devastação da biodiversidade, riscos de dizimação de milhões de pessoas que não terão tempo para se adaptar nem para minorar os efeitos danosos das mudanças climáticas podem mudar o estado de consciência da humanidade. Agora temos que contar com a era das tribulações em todas as partes da Terra. Ou mudamos já agora nossos padrões de produção e consumo ou então poderemos conhecer o caminho já percorrido pelos dinossauros.

O senhor concorda que está havendo uma overdose de discussão sobre mudanças climáticas e que isso pode levar a uma banalização completa da preocupação ambiental ou acha que essa ampliação da audiência para esse tipo de questão é saudável?

R. Eu acho que se deu uma versão hollyoudiana ao fato no interesse da grande midia que lucra com esta dramatização. Mas o tempo do relógio corre contra nós. Se não fizermos nada e deixarmos as coisas correrem como até agora corriam, podemos ir ao encontro do imponderável e do inevitável e pôr em risco o futuro da espécie até sua completa desaparição. O fato é em si alarmante e exige uma nova responsabilidade coletiva. Antes importava proteger e cuidar e não ultrapassar o limite de suportabilidade da Terra. Agora se comprovou que já ultrapassamos o limite, em 25% da capacidade de reposição do sistema-Terra. Então temos que mudar radicalmente de paradigma civilizatório. Não podemos continuar no mesmo curso, pois ele nos conduz a um abismo dentro de poucos anos. A Terra poderá continuar sem nós.

Como o senhor vê a gestão do presidente Lula na área? Aprovação dos transgênicos e a transposição do São Francisco aparecem como duas das medidas que desagradam aos ambientalistas, mas que vem sendo encampadas, em algum grau, pelo governo Lula. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

R. Pessoalmente crio que o Presidente Lula possui um deficit considerável com referência à consciência ecológica. Ele é experimentado na relação capital versus trabalho, mas mostra insuficiências na área ambiental e ecológica em geral. Por isso o PAC não prevê nada específico na área ambiental. Apenas são pressupostas as medidas legais vigentes sempre que um projeto vai se implantar. Ele precisa da análise prévia de impacto ambiental e a aprovação do Ibama. Mas não há uma política específica, especilamente, com referência à preservação ecológica da Amazônia. Prevêem-se novas fronteiras agrícolas mas pouco ou nada se diz sobre o risco ambiental que elas comportam. Basta considerar os dados do Orçamento para este ano. O Ministério do Meio Ambiente continua a ter seus recursos cortados; o corte mais recente foi de R$212,7 milhões ou 32,7% pois caiu de R$651,2 milhões para R$438,5 milhões, pouco mais do que caberá ao Ministério do Turismo (R$400 milhões), menos do que terão o Esporte (R$643,9 milhões) ou a presidência da República (R$774,6 milhões), 13 vezes menos que a Defesa (R$5,82 bilhões). Exceção seja feita da Ministra Marina que luta ferozmente por uma nova concepção do desenvolvimento relacionada com o ambiente e até com um novo paradigma de civilização nos trópicos. Mas é praticamente voz profética no deserto dos que pensam obssessivamente apenas em crescimento.

Como vê a proliferação do etanol e do biodiesel? O senhor considera que isso pode levar o país a concentrar ainda mais produção agrícola em poucos produtos e dar mais fôlego para o agronegócio?

R. Eu vejo com preocupação. Procura-se uma alternativa à matriz energética para manter o mesmo padrão de consumo a que estamos acostumados. Este não é universalizável. Já se fizeram os cálculos. Se quiséssemos universalizar o bem estar material dos paises ricos, deveríamos ter à disposição outras três Terras iguais a nossa atual, coisa que é impossível. O triste é que não se prevê uma alternativa de modelo de sociedade menos energívora e dizimadora de recursos naturais não renováveis. Nesse sentido o memorando Brasil-Estados Unidos ou Bush-Lula contem sérios riscos de perpetuar a crise que por sua vez é responsável pelo aquecimento global. Há ainda o risco de que se roubem terras destinadas aos alimentos e às fibras, portanto, o estömago, para produzir etanol a fim de manter o sistema funconando, portanto, as máquinas. Que não ocorra o que aconteceu em São Paulo com a implantação nos anos 70 do Proálcool que gerou a expulsão das culturas de alimentos, encarecimento de preços dos produtos alimentícios e grande desemprego. Sabe-se que coisa semelhante já está ocorrendo agora em várias regiões de Minas Gerais.

Qual a sua visão de mundo atual? Quais valores lhe parecem mais importantes defender e e do ponto de vista de suas convicções quais foram perdendo espaço nos últimos anos? R. Vejo que estamos consolidando uma nova fase da história da Terra e da Humanidade que é a fase planetária. Depois da dispersão secular dos seres humanos por sobre as partes da Terra, agora estão voltando para o todo, para a única Casa Comum que o planeta Terra. Somos e nos sentimos uma espécie, a espécie humana sapiens e demens, inteligente e demente, formando a família humana com os mais diferentes filhos e filhas. Mas não estamos ainda preparados para esta nova situação. Continuamos vivendo sob o paradigma da divisão, do império de uns sobre outros e da compartimentação das experiências. Importa estarmos à altura da novidade que está se realizando. Agora é a idade de ferro da globalização sob a regência do econômico-financeiro. Este se regula apenas pela competição sem qualquer sentido de cooperação. Somente a competição poderá nos levar a um imenso impasse de falta de um centro articulador que se preocupa com o planeta e com seus habitantes como um todo. Por isso virá ainda ou se reforçará uma globalização política, ética e também espiritual. Eu pessoalmente vejo que precisamos de uma ética mínima que nos permita viver juntos, assentada em três virtudes básicas, a hospitalidade como direito e dever de todos, a convivência pacífica entre os mais diferentes povos e culturas, evitando assim o fundamentalismo e o terrorismo e por fim a comensalidade, quer dizer, poder sentar juntos ao redor da mesa para comer e beber da generosidade da natureza e sentirmo-nos de fato como familia humana. Estou seguro de que isso vai ocorrer um dia. Mas precisamos colocar estes fundamentos já agora para que a habitação inclua a todos não só os humanos mas todos os seres vivos que conosco participam desta aventura planetária no curto tempo que nos tocar viver por sobre a Terra.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Canaviais já fazem duas vítimas este ano no estado de São Paulo

Bom, agora que pretendemos ser "potência" na indústria do álcool combustível - que fique bem claro -, notaremos um grande aumento de terras com essa atividade. Aliás, isso já está acontecendo no interior paulista. Não interior muito distante como Ribeirão Preto, mas logo ali, como em Sorocaba. Assim, a situação dos trabalhadores nos canaviais, que já é pésima, tende a piorar, se não forem tomadas medidas contra isso. Mas aí já é assunto para o texto de hoje... Canaviais já fazem duas vítimas este ano no estado de São Paulo As péssimas condições de trabalho do setor açucareiro do Brasil já fizeram duas vítimas este ano no estado de São Paulo. Na cidade de Guariba, o trabalhador José Pereira Martins, de 52 anos, morreu de infarto. Na cidade de Barretos, ainda no mês de abril, Lourenço Paulino de Souza, de apenas 20 anos, foi encontrado morto. Ele trabalhava para a usina São José, do grupo Açúcar Guarani. Com estas mortes, o número sobe para 19 em pouco mais de dois anos. O advogado da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Aton Fon, afirma que o atual acordo entre Brasil e Estados Unidos para a produção de agro-combustível, dificulta a fiscalização do setor tendo em vista que a preocupação do governo agora é aumentar o plantio da monocultura e isso não prioriza as boas condições de trabalho para os cortadores. “O trabalhador deveria contar com o estado para fazer a fiscalização, estabelecendo este regulamento. Mas neste caso se complica tudo, porque o estado está do outro lado. O estado em lugar de fiscalizar para garantir a saúde do trabalhador, está neste momento mais interessado em garantir o aumento na produção do etanol, em garantir que os usineiros tenham mais acessos a créditos. Neste momento, a defesa dos trabalhadores está bastante desarticulada.” Um agravante deste problema é que a maioria dos cortadores tem contratos temporários e ganham somente por produção, por exemplo no caso do corte da cana, eles recebem por tonelada. Segundo Fon, isso tira as responsabilidades trabalhistas das empresas que contratam os serviços. Na maioria das vezes um trabalhador corta até 12 toneladas de cana por dia, com dez mil golpes de facão. De São Paulo, da Radioagência NP, Danilo Augusto. Do site "Notícias do Planalto"

quinta-feira, 3 de maio de 2007

A Pulsão de Morte da Concorrência

Assassinos amoque e suicidas como sujeitos da crise Robert Kurz Há alguns anos que se tornou corrente no mundo ocidental a expressão "massacre em escolas". As escolas, outrora locais da educação mais ou menos autoritária, do erotismo púbere e das travessuras juvenis inofensivas, entram cada vez mais no campo de visão da esfera pública como palco de tragédias sangrentas. Certamente, relatos sobre alguns amoques já são conhecidos também do passado. Mas cabe aos excessos sanguinolentos actuais uma qualidade própria e nova. Eles não se deixam encobrir por uma névoa cinza de generalidade antropológica. Pelo contrário, trata-se inequivocamente de produtos específicos de nossa sociedade contemporânea. A nova qualidade desses actos amoques pode ser constatada em vários aspectos. Por exemplo, não são acontecimentos muito distanciados no tempo, como em épocas anteriores, antes os massacres têm lugar, desde os anos 90, numa sequência cada vez mais compacta. São novos também dois outros aspectos. Uma porcentagem grande e desproporcional dos autores é de jovens, uma parte até mesmo de crianças. Um número muito pequeno desses amoques é mentalmente perturbado no sentido clínico; pelo contrário, a maioria é considerada "normal" e bem ajustada, antes do seu acto. Quando as mídias constatam esse facto, sempre com aparente surpresa, admitem indirecta e involuntariamente que a "normalidade" da sociedade actual traz em si o potencial para actos amoques. Chama a atenção também o carácter global e universal desse fenómeno. Começou nos EUA. Em 1997, na cidade de West Paducah (Kentucky), um adolescente de 14 anos matou a tiro, após a oração matinal, três colegas de escola, e cinco outros foram feridos. Em 1998, em Jonesboro (Arkansas), um menino de 11 e um de 13 anos abriram fogo contra a sua escola, matando quatro meninas e uma professora. No mesmo ano, em Springfield (Oregon), um jovem de 17 anos matou a tiro numa "high school" dois colegas e feriu 20 outros. Um ano mais tarde, dois jovens de 17 e 18 anos provocaram o célebre banho de sangue de Littleton (Colorado): com armas de fogo e explosivos, eles mataram na sua escola 12 colegas, um professor e, em seguida, a si próprios. Na Europa, esses massacres em escolas foram de início interpretados, ainda no contexto do tradicional antiamericanismo, como consequência do culto às armas, do darwinismo social e da escassa educação social nos EUA. Mas são justamente os EUA, em todos os aspectos, o modelo para todo o mundo capitalista da globalização, como logo se iria mostrar. Na pequena cidade canadiana de Taber, apenas uma semana após o caso de Littleton, um adolescente de 14 anos disparou ao seu redor, matando um colega de escola. Outros massacres em escolas foram notificados nos anos 90 na Escócia, no Japão e em vários países africanos. Na Alemanha, em Novembro de 1999, um estudante liceal de 15 anos matou a professora, munido de duas facas; em Março de 2000, um garoto de 16 anos matou à bala o director da escola e depois tentou suicidar-se; em fevereiro de 2001, um jovem de 22 anos matou com um revólver o chefe da sua firma e depois o director de sua ex-escola, para finalmente ele mesmo voar pelos ares detonando um tubo de explosivos. O recente acto amoque de um jovem de 19 anos em Erfurt, que, no fim de Abril de 2002, durante o exame de conclusão do secundário, chacinou com uma "pump gun" 16 pessoas (entre elas quase todo o corpo docente da escola) e que em seguida atirou contra a própria cabeça, foi somente o ápice até agora de toda uma série. Naturalmente o fenómeno dos massacres em escolas não pode ser visto de modo isolado. A bárbara "cultura do acto amoque" tornou-se há tempos, em muitos países, um acontecimento mediático periódico; os atiradores amoques jovens em escolas formam apenas um segmento dessa microexplosão social. Os relatos das agências sobre actos amoques em todos os continentes mal podem ser contados ainda; por causa de sua frequência relativa, só são aceites pelas mídias quando têm um efeito propriamente espectacular. Desse modo, aquele suíço de índole correcta, que no fim de 2001 crivou de balas com uma pistola automática meio parlamento cantonal e depois se matou, chegou à triste celebridade mundial tanto quanto aquele universitário francês, graduado e desempregado, que poucos meses depois abriu fogo com duas pistolas contra a Câmara Municipal da cidade-satélite parisiense de Nanterre, matando oito políticos locais. Se o acto de amoques armados é mais comum que os massacres especiais em escolas, então ambos os fenómenos estão por sua vez integrados no contexto maior de uma cultura da violência interna à sociedade, que passa a inundar o mundo todo no decurso da globalização. Fazem parte disso as numerosas guerras civis, virtuais e manifestas, a economia da pilhagem em todos os continentes, a criminalidade de massas armadas, reunidas em bandos nos bairros pobres, nos guetos e nas favelas; de modo geral, o universal "prosseguimento da concorrência por outros meios". Por um lado, é uma cultura do roubo e do assassinato, cuja violência se dirige contra os outros; no entanto os autores assumem o "risco" de eles próprios serem mortos. Mas, simultaneamente, aumenta também, por outro lado, a auto-agressão imediata, como comprovam as taxas crescentes de suicídio entre os jovens em muitos países. Pelo menos para a história moderna, é uma novidade que o suicídio não seja praticado apenas por desespero individual, mas também de forma organizada e em massa. Em países e culturas tão distantes entre si quanto os EUA, a Suíça, a Alemanha e o Uganda, as chamadas "seitas suicidas" despertaram a atenção várias vezes nos anos 90, de maneira macabra, por conta dos actos de suicídio colectivo e ritualizado. Ao que parece, o acto amoque forma na recente cultura global da violência o vínculo lógico de agressão aos outros e auto-agressão, uma espécie de síntese de assassinato e suicídio encenados. A maioria dos amoques não só mata indiscriminadamente como também executa a si própria em seguida. E as distintas formas de violência pós-moderna começam a fundir-se. O autor potencial do latrocínio é também um suicida potencial; e o suicida potencial é também um amoque potencial. Diferentemente dos actos amoques em sociedades pré-modernas (a palavra "amok" provém da língua malaia), não se trata de acessos espontâneos de fúria ensandecida, mas sempre de acções longa e cuidadosamente planejadas. O sujeito burguês está determinado ainda pelo "autocontrole" estratégico e pela disciplina funcional, até mesmo quando decai na loucura homicida. Os amoques são robôs da concorrência capitalista que ficaram fora de controle: sujeitos da crise, eles desvelam o conceito de sujeito moderno, esclarecido, em todas as suas características. Mesmo um cego em termos de teoria social deve atentar nos paralelos com os terroristas do 11 de Setembro de 2001 e com os terroristas suicidas da Intifada palestina. Muitos ideólogos ocidentais pretenderam atribuir esses actos incondicionalmente, com visível apologia, ao "âmbito cultural alheio" do Islão. Nas mídias, foi dito de bom grado a respeito dos terroristas de Nova York, formados anos a fio na Alemanha e nos EUA, que, apesar da integração exterior, eles "não chegaram ao Ocidente" do ponto de vista psíquico e espiritual. O fenómeno do islamismo terrorista, com seus atentados suicidas, seria devido ao problema histórico de que não houve no Islão nenhuma época de iluminismo. A afinidade interna manifesta entre os jovens amoques ocidentais e os jovens terroristas suicidas islâmicos comprova exactamente o contrário. Ambos os fenómenos pertencem ao contexto da globalização capitalista; são o resultado "pós-moderno" último do próprio iluminismo burguês. Justamente porque eles "chegaram" ao Ocidente em todos os aspectos, os jovens estudantes árabes se desenvolveram, tornando-se terroristas. Na verdade, no início do século 21, o Ocidente (diga-se: o carácter imediato do mercado mundial e de sua subjectividade totalitária centrada na concorrência) está em toda a parte, ainda que sob condições distintas. Mas a diferença das condições tem a ver mais com a distinta força do capital do que com a diversidade das culturas. A socialização capitalista não é hoje secundária em todos os continentes, mas sim primária; e o que foi hipostasiado como "diferença cultural" pelos ideólogos pós-modernos faz parte antes de uma superfície ténue. O diário de um dos dois atiradores amoques de Littleton foi guardado a sete chaves pelas autoridades norte-americanas, não sem razão. Por indiscrição de um funcionário, soube-se que o jovem criminoso havia anotado o seguinte, entre outras fantasias de violência: "Por que não roubar em algum momento um avião e fazê-lo cair sobre Nova York?". Que embaraçoso! O que foi apresentado como atrocidade particularmente pérfida da cultura alheia já havia antes tomado forma na cabeça de um rebento inteiramente da lavra da "freedom and democracy". Há muito tempo a esfera pública oficial recalcou também a informação de que, poucas semanas após o 11 de Setembro nos EUA, um adolescente de 15 anos se havia lançado num pequeno avião sobre um edifício. Com toda a seriedade, as mídias norte-americanas afirmaram que o rapaz havia ingerido uma dose excessiva de preparados contra a acne e que, por isso, teve um distúrbio mental momentâneo. Essa "explicação" é um produto digno da filosofia do iluminismo no seu estágio último positivista. Na realidade, a "sede de morte" representa um fenómeno social mundial pós-moderno que não está ligado a nenhum lugar social ou cultural particular. Esse impulso não pode ser disfarçado, tomando-se como a soma de meros fenómenos isolados e fortuitos. Pois lembram aquele que realmente age os milhões que circulam com os mesmos padrões intelectuais e emocionais insolúveis e brincam com as mesmas ideias mórbidas. Só em aparência os terroristas islâmicos se diferenciam dos amoques ocidentais individuais ao reivindicar motivos políticos e religiosos organizados. Ambos estão igualmente longe de um "idealismo" clássico que poderia justificar o sacrifício de si mesmos com objectivos sociais reais. A respeito das novas e numerosas guerras civis e do vandalismo nos centros ocidentais, o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger constatou que aí "não se trata de mais nada". Para entender, é preciso inverter a frase: o que é esse nada de que se trata? É o completo vazio do dinheiro elevado a fim em si mesmo, que agora domina definitivamente a existência como deus secularizado da modernidade. Esse deus reificado não tem em si nenhum conteúdo sensível ou social. Todas as coisas e carências não são reconhecidas em sua qualidade própria, mas antes esta lhes é tirada para "economicizá-las", ou seja, para transformá-las em mera "gelatina" (Marx) da valorização e, desse modo, em material indiferente ("gleich-gültig"). É um engano crer que o cerne dessa concorrência universal seria a auto-afirmação dos indivíduos. Bem pelo contrário, é a pulsão de morte da subjectividade capitalista que vem à luz como última consequência. Quanto mais a concorrência abandona os indivíduos ao vácuo metafísico real do capital, tanto mais facilmente a consciência resvala numa situação que aponta para além do mero "risco" ou "interesse": a indiferença para com todos os outros se reverte na indiferença para com o próprio eu. Abordagens sobre essa nova qualidade da frieza social como "frieza em relação a si próprio" já se apresentavam nos grandes surtos de crise da primeira metade do século 20. A filósofa Hannah Arendt falou nesse sentido de uma cultura da "autoperdição", de uma "perda de si mesmo" dos indivíduos desarraigados e de uma "debilitação do instinto de autoconservação" por causa do "sentimento de que não depende de si mesmo que o próprio eu possa ser substituído por um outro a qualquer momento e em qualquer parte". Aquela cultura da autoperdição e do auto-esquecimento que Hannah Arendt ainda referia exclusivamente aos regimes políticos totalitários da época se reencontra hoje, de forma muito mais pura, no totalitarismo económico do capital globalizado. O que no passado era estado de sítio torna-se estado normal e permanente: o próprio quotidiano "civil", converte-se na autoperdição total dos homens. Esse estado não concerne somente aos pobres e decaídos mas a todos, porque veio a ser o estado predominante da sociedade mundial. Isso vale particularmente para as crianças e adolescentes, que não têm mais nenhum critério de comparação e nenhum critério de crítica possível. É uma perda de si idêntica e uma perda da capacidade de julgar em vista do imperativo económico avassalador que caracteriza os bandos de espancadores, os saqueadores e os violentadores tanto quanto os auto-exploradores da "new economy" ou os trabalhadores de tela do "investment banking". O que Hannah Arendt disse sobre os pressupostos do totalitarismo político é hoje a principal tarefa oficial da escola, a saber: "Arrancar das mãos o interesse em si próprio", para transformar as crianças em máquinas produtivas abstractas; mais precisamente, "empresários de si mesmos", portanto sem nenhuma garantia. Essas crianças aprendem que elas precisam sacrificar-se sobre o altar da valorização e ter ainda "prazer" nisso. Os alunos do primário já são entupidos com psicofármacos para que possam competir no "vai ou racha". O resultado é uma psique perturbada de pura insociabilidade, para a qual a auto-afirmação e a autodestruição se tornaram idênticas. É o amoque que necessariamente vem à luz atrás do "automanager" da pós modernidade. E a democracia da economia de mercado chora lágrimas de crocodilo pelas suas crianças perdidas, que ela própria educa sistematicamente para serem monstros autistas. Folha de S. Paulo, 26.05.2002. Tradução de Luiz Repa Contato: antivalor@bol.com.br (recebido por e-mail)