quarta-feira, 18 de abril de 2007

Uma Justiça de Classe

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, FABIO COMPARATO e JOSÉ AFONSO DA SILVA* Folha de São Paulo 17.04.2007 Um sistema de justiça penal incapaz de produzir uma sentençadefinitiva após onze anos de tramitação sem dúvida padece dedefeitos estruturais graves. Independentemente da competência ea respeitabilidade de muitos de seus integrantes, esse sistema precisa ser inteiramente reformado. Veja-se o caso do processo-crime movido pelo Ministério Público contra os dois oficiais responsáveis pelo massacre de trabalhadores sem terra, em Eldorado do Carajás, Estado do Pará. O crime foi cometido há onze anos -no dia 17 de abril de 1996. Nesse período, a Justiça não decidiu se os réus -autores da ordem de disparo contra as vítimas- atuaram no estrito cumprimento do dever; ou extrapolaram suas funções; ou obedeceram ordens de autoridades superiores (as quais, diga-se de passagem, nem sequer foram denunciadas pelo Ministério Público). Será necessário tanto tempo para a Justiça decidir essas questões, mesmo tratando-se de um crime fotografado, filmado e presenciado por centenas de pessoas? De um crime que deixou 19 mortos, 69 mutilados e centenas de feridos? Dos 144 réus, dois -o comandante e o subcomandante do massacre- foram condenados pelo Tribunal do Júri a 228 e 154 anos de reclusão. Pura pirotecnia para aplacar a opinião pública! Até hoje, o processo criminal perambula pelos tribunais do país e os condenados continuam livres. No cível, a mesma coisa: até agora as ações de indenização por perdas sofridas pelas vítimas não produziram resultado algum. A população rural - enorme segmento da população brasileira- não consegue ser ouvida por nenhuma instância do Estado: o Executivo não avança na reforma agrária; o Legislativo só se lembra dela para tentar criminalizar suas entidades representativas; e o Judiciário, tão rápido na concessão de ordens de despejo, não prende os que assassinam suas lideranças nem resolve em tempo razoável os processos de desapropriação e de discriminação de terras públicas. A trágica ironia é que os mesmos sem-terra estão legalmente assentados no mesmo imóvel que estavam ocupando quando foram despejados à bala para cumprimento de uma ordem de despejo. Em outras palavras: o Estado reconheceu que o imóvel não cumpria a função social da propriedade e, portanto, enquadrava-se perfeitamente nos casos em que o governo federal está autorizado a desapropriá-lo para fins de reforma agrária, como prescreve a Constituição. Se, em vez de decretar um despejo a toque de caixa, a Justiça e o Executivo tivessem agido nos termos da lei, dezenove vidas teriam sido poupadas e 69 pessoas não teriam sido mutiladas. As classes dominantes recusam-se a compatibilizar o ritmo da reforma agrária com a urgência das medidas necessárias para deter o processo de empobrecimento que está levando as populações rurais ao desespero. O Judiciário, que poderia contribuir para minorar o problema, só faz agravá-lo. Em um país que se pretende democrático, não cabe uma justiça de classe: atenta e prestativa às camadas ricas da população; míope para ver o direito dos pobres; e surda para os seus clamores. Muitas cartas indignadas chegam às redações dos jornais reclamando da selvageria dos sem-terra quando eles ocupam edifícios do Incra, fecham estradas, depredam postos de pedágio, ocupam terras. Os que assim reclamam -se não são interessados ou hipócritas- deviam atentar para o óbvio: todos esses atos não passam de gestos destinados a chamar a atenção da sociedade para o drama dos sem-terra. Afinal, o que querem as pessoas investidas no poder do Estado brasileiro? Uma nova Colômbia? * PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO , 75, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP. FÁBIO KONDER COMPARATO , 70, advogado, professor titular aposentado da faculdade de Direito da USP e presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB. JOSÉ AFONSO DA SILVA , 81, advogado, professor aposentado da faculdade de Direito da USP, é autor de "Curso de Direito Constitucional Positivo", entre outras obras. Foi secretário da Segurança Pública no governo Covas.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Índio Galdino, Dez Anos Depois

Antes de ficar inconsciente, perguntava para os médicos que o atendiam: “Por que fizeram isso comigo?” Até hoje é difícil respondê-lo
Paulo Maldos, Do site do Jornal Brasil de Fato

Na madrugada do dia 20 de abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos, 44 anos, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, do estado da Bahia, dormia no ponto de ônibus de uma praça pública de Brasília. Tinha ido para a Capital com uma delegação de oito lideranças de seu povo, com o objetivo de buscar apoio para as suas reivindicações no sentido de recuperação do território, invadido por muitos fazendeiros.A terra tradicional dos Pataxó Hã-Hã-Hãe é denominada de Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, possui 53.400 hectares e foi demarcada em 1934.

Naqueles dias, uma marcha nacional do MST havia chegado à cidade. Galdino participou da recepção aos sem-terra e de reuniões destes com autoridades, inclusive com o presidente da República da época, Fernando Henrique Cardoso, para colocar também as reivindicações indígenas. Galdino dormia no ponto de ônibus porque chegou tarde das reuniões na pensão onde estava hospedado. A dona da pensão se recusou a abrir a porta para ele.
Eram cinco horas da manhã quando Galdino acorda completamente em chamas. Socorrido por jovens que voltavam de uma festa, foi levado para o hospital. Tinha queimaduras em noventa e cinco por cento do corpo. Entrou logo em coma e faleceu às duas horas da manhã do dia 21 de abril de 1997. Antes de ficar inconsciente, perguntava para os médicos que o atendiam: “Por que fizeram isso comigo?”

Essa pergunta, até hoje é difícil de ser respondida. Essa pergunta sacudiu a sociedade brasileira na época, chocada com o horror da crueldade que ciclicamente nos atinge, às vítimas em primeiro lugar e, em seguida, a todos nós, em nossa auto-imagem de humanidade e civilização.

Os autores da barbárie foram cinco jovens de classe média brasiliense, um deles menor de idade. Numa noite vazia, resolveram atear fogo numa pessoa que dormia indefesa para, segundo declarou o menor, se divertirem. Cometido o crime, fugiram, mas um outro jovem que passava por ali, um chaveiro, anotou o número da chapa do carro dos assassinos e o entregou à polícia.
Depois da brutalidade, os criminosos foram para casa dormir, como se nada tivessem feito. Foram identificados e presos. Diante da comoção nacional ainda quiseram se defender, com o seguinte argumento: “Não sabíamos que era um índio, pensávamos que era só um mendigo.” Ou seja, em mendigos é permitido atear fogo.

Dez anos depois

Podemos olhar para este crime hediondo dez anos depois, e nos interrogar novamente: “Por que fizeram isso com ele?”

Continua difícil responder a essa pergunta - e os crimes bárbaros não cessaram.

Foram inúmeros os mendigos assassinados, muitos através do fogo, em praças e ruas das nossas cidades, durante as noites dos últimos dez anos. Suspeitos foram vários: policiais; seguranças; comerciantes; quadrilhas; apenas assassinos. Identificados e punidos? Nem um sequer nos vem à memória.

Na verdade, temos notícias desde 1984, de moradores de rua agredidos e assassinados, por grupos que atuam durante a noite, nas capitais e cidades do interior do Brasil. Nos dias 19 e 22 de agosto de 2004, sete moradores de rua de São Paulo foram brutalmente assassinados enquanto dormiam. Os principais suspeitos foram policiais que trabalhavam fornecendo segurança para comerciantes do centro da cidade. Em 2006, moradores de rua de Belo Horizonte foram agredidos com fogo. No dia 21 de março de 2007, em Garanhuns, no agreste pernambucano, um adolescente lançou gasolina e em seguida ateou fogo em dois moradores de rua, enquanto dormiam na varanda de uma casa abandonada: um menino de rua de 16 anos e um adulto, de 38 anos, foram internados com ferimentos graves.

O caso Galdino e o drama indígena

Quanto aos assassinos de Galdino, encontram-se em liberdade condicional desde o final de 2004. O menor não chegou a ser preso. Os maiores Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novely Cardoso trabalharam na prisão, raro privilégio concedido a poucos na situação deles, e conseguiram abreviar a pena. Trabalharam e estudaram fora do presídio, estando em regime fechado, privilégio concedido pela Justiça, embora totalmente ilegal. Muitas vezes foram vistos nas noites de Brasília, bebendo com amigos, quando deveriam estar encarcerados.Muitos indígenas foram assassinados, desde aquele abril de 1997 até abril de 2007: exatamente 257 indígenas em todo o país, segundo dados do Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI.

Entre esses 257 indígenas, temos crianças, jovens, adultos e idosos: temos lideranças assassinadas em lutas pelo território; temos indígenas assassinados por outros indígenas; temos idosos assassinados por seguranças de fazendas; temos jovens assassinados por jagunços a mando de fazendeiros; temos adultos assassinados em brigas na cidade; temos crianças assassinadas por crueldade; temos mulheres violentadas e assassinadas por brancos.

Este número 257 encerra um grande e secular drama, o drama dos povos indígenas em nosso país, composto por muito sofrimento, vivido por muitos povos e por muitas comunidades indígenas.Muitas dessas mortes foram parecidas com a de Galdino Jesus dos Santos: numa cidade do Rio Grande do Sul, assassinos, encobertos pela noite, causaram a morte violenta de um idoso indígena; na área rural do Mato Grosso do Sul, na beira de uma estrada, na porteira de um acampamento, um tiro covarde dado à distância, por seguranças de fazenda, atingem um lider indígena, sem nenhuma condição de defesa. Todos esses crimes seguem rigorosamente impunes.

Depois de dez anos, a situação da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, pela qual lutava Galdino, encontra-se parada no Supremo Tribunal Federal. Ela é objeto de uma ação de nulidade de título dos fazendeiros que invadiram aquela terra indígena com a conivência do Governo do Estado da Bahia.

Povos Indígenas e Povo da Rua

A morte do índio Galdino enlaça dois dramas: o dos povos indígenas e o do povo da rua. O que possuem em comum esses povos é a sua radical humanidade, sua característica frágil, excluída de toda utilidade para um sistema onde apenas a mercadoria e o “ser mercadoria” contam. Como não cabem no sistema do Capital, este tenta eliminá-los, quer seja pelos “seguranças” urbanos, quer seja pelos “seguranças” e jagunços rurais. Quer seja, também, pelo preconceito, ódio e desprezo, enraizados pelo mesmo sistema em parte da população brasileira e que se manifestam em nosso cotidiano, em múltiplas formas de violência.

O que se coloca como um desafio para todos nós é compreender o que acontece de tão grave em nossa sociedade, para que seres humanos sejam submetidos sistematicamente à violência e à morte com características de barbárie.

Torna-se urgente compreender e mudar o destino de nossa sociedade, rompendo com um sistema econômico e com uma ideologia que sacrificam aqueles que não cabem na lógica do Capital.

Torna-se necessário construir uma outra sociedade, onde povos indígenas e povo da rua, onde todos possamos viver integralmente, livremente, nossa humanidade comum.

* Assessor político do CIMI (Conselho Indigenista Missionário)

quinta-feira, 5 de abril de 2007

"Me engana que eu gosto": A não atualização dos índices de produtividade da terra no governo Lula

"Me engana que eu gosto": A não atualização dos índices de produtividade da terra no governo Lula

Ariovaldo Umbelino de Oliveira* Clique para ouvir a entrevista (6´00´´ / 1,4 Mb) (Do site Notícias do Planalto, publicado em 26/03/07) Em 2003, quando foi elaborado o II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), ficou acertado entre os movimentos sociais e o governo Lula que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) encaminharia ao Ministério da Agricultura uma nova minuta de portaria interministerial para a atualização dos índices de produtividade dos imóveis rurais. Esta iniciativa era importante para que se estabelecessem os novos índices mínimos de utilização da terra para que ela cumpra a função social quanto à produtividade, segundo a Constituição Federal de 1988 e Lei 8.629/93. Os índices utilizados atualmente pelo Incra foram elaborados em 1980, baseados nos indicadores de produtividade das lavouras e dos rebanhos por hectares levando-se em conta o nível técnico da agropecuária, segundo os dados do censo agropecuário de 1975 do IBGE. Estes índices foram inclusive, utilizados durante o governo Sarney na implantação do I PNRA. Hoje eles estão completamente defasados, pois, por exemplo, no estado de São Paulo basta-se produzir 1.900 kg/hectare de milho para que a propriedade seja considerada produtiva. Entretanto, a produtividade média do milho neste estado na safra de 2005/6, foi de 4.150 kg/ha. E por que até agora estes índices não foram atualizados? Não foram porque não interessa aos latifundiários, pois assim, seus imóveis mesmo com baixas produtividades escapam da desapropriação e da reforma agrária. Caso o Incra cumprisse a Constituição de 1988, mesmo com estes índices desatualizados, o Brasil tinha em 2003, um total de 54 mil grandes imóveis rurais ocupando 120 milhões de hectares considerados improdutivos. Portanto, passíveis de desapropriação por não cumprirem a função social. Em São Paulo há mais de 2,5 milhões de hectares improdutivos e, no Mato Grosso mais de 34 milhões de hectares. No governo FHC, o Incra solicitou estudos para a Unicamp e depois à Embrapa para fazer a atualização dos índices. Estes estudos indicaram que o índice para São Paulo deveria ser atualizado para 3.000 kg/ha para o milho. Estes novos indicadores foram então, incluídos no documento que a equipe coordenada por Plínio de Arruda Sampaio preparou para o II PNRA, e o governo Lula comprometeu-se a atualizá-los. Mas, foi somente em meados de abril de 2005, depois das negociações da “Marcha para Brasília” dos movimentos sociais em 2004, que o MDA e o Incra encaminharam ao Ministério da Agricultura a proposta de portaria para atualização dos índices de produtividade dos imóveis rurais. Entretanto, nem mesmo assim, o então ministro da Agricultura Roberto Rodrigues (e ex-presidente da Associação Brasileira do Agribusiness) concordou com eles. Inclusive, as organizações dos latifundiários protestaram através da mídia afirmando que “o conceito era burro, e que estava tudo errado”. Criado o impasse entre o então ministro do MDA, Miguel Rosseto e o da Agricultura, Roberto Rodrigues, caberia ao presidente Lula resolver, isto em abril de 2005. Foi então que prevaleceu a opinião do ministro do agronegócio Roberto Rodrigues, e LULA ficou com os latifundiários, pois, a portaria modificada por técnicos dos dois ministérios desde fevereiro de 2006, não foi assinada, e mesmo assim, Rodrigues saiu do ministério em 2006. Com a posse de Luís Carlos Guedes Pinto como ministro da Agricultura, todos imaginavam que ele, que fora fundador e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, iria assinar a portaria conjunta. Ledo engano, pois segundo a mídia no final do ano de 2006, novos estudos teriam sido feitos e os índices propostos estariam sob segredo na Casa Civil da Presidência da República. A conclusão acertada dos jornalistas indicava também, que o presidente LULA pretendia esperar o segundo mandato para aprovar a nova tabela dos índices de produtividade das propriedades rurais. Mas, a realidade cruel é que os movimentos sociais e todos os que lutam pela reforma agrária no Brasil, podem, se nada for feito em contrário, continuar a repetirem o mesmo ditado que já viveram no primeiro mandato do governo LULA, “me engana que eu gosto”, pois, a portaria com os índices atualizados pode novamente não ser assinada. (*) Professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de "Modo capitalista de produção (Ática, 1995)", "Agricultura camponesa no Brasil" (Contexto, 1997).