terça-feira, 8 de maio de 2007

Bento XVI, Celam, Lula e Teologia da Libertação

Em "Comemoração" à visita do papa, publico aqui uma entrevista de Leonardo Boff sobre o pontífice. fonte: site do Leonardo Boff (em "links", ao lado) Publicada na revista forum (redacao@revistaforum.com.br) Bento XVI, Celam, Lula e Teologia da Libertação

O papa Bento XVI é diferente do cardeal Ratzinger?

R. Eu pensava que iria ser diferente. Mas vejo que no fundo é o mesmo. Um Papa doutrinário que ainda pensa ser o Cristianismo a única via para a salvação. As demais vias são todas incompletas e não terminam em Deus. Geralmente quando alguém chega ao ponto mais alto do poder, se torna mais indulgente e flexível. Com o Papa Bento XVI não ocorreu esta conversão. Ele reafirma a tradicional rigidez do Catolicismo romano com as antipatias que provoca e a evasão de fiéis que saem inconformados com caminhos da Igreja que não são adequados ao nosso tempo. Os cristãos têm o direito de serem contemporâneos em sua fé e não apenas reprodutores de um passado antigo.

Que futuro o senhor projeta para a Igreja com o pontifcado de Ratzinger?

R. Já dá para se ver que ele é um Papa de pura transição. Por isso não possui projeto próprio de Igreja. É o mesmo do de seu antecessor que ele fundamentalmente ajudou a formular: uma Igreja que se constrói para dentro, reforçando sua identidade mas sempre com receios e medos da modernidade, daquilo que chama de relativismo e de politização da fé como a teologia da libertação.

Na ocasião da escolha de Bento XVI o senhor disse que seria difícil "amar o novo papa". Essa opinião ainda se sustenta hoje?

R. O documento que publicou Sacramentum Caritatis sobre a eucaristia contém elementos positivos mas reafirma contundentemente a inflexibilidade da doutrina tradicional sobre questões de moral familiar e sexual. Afasta os divorciados da comunhão, não aceita os preservativos, mesmo para evitar a Aids, nega o "casamento" entre homosexuais e pede que ministros de Estado e legisladores católicos se neguem a votar medidas que conflitam com a doutrina católica. Tais coisas escandalizam e o tornam o Papa no mínimo antipático. Ele não se faz amável por todos estes e por aqueles que valorizam o bom senso e a misericórdia, ausentes em sua posição tradicional.

Como o senhor vê a condenação ao silêncio de Jon Sobino, expoente da teologia da libertação, pelo papa Bento XVI?

R. Eu vejo como uma escaramuça a mais contra a teologia da libertação, a mais viva em todo o Terceiro Mundo. Roma se deu conta de que, no fundo, perdeu a batalha contra a teologia da libertação. Produziram-se dois documentos um claramente contra em 1984 e outro resgatando alguns elementos positivos em 1986. Mas de pouco adiantou. Esta teologia nasceu ao ouvir o grito dos pobres. Esse grito hoje virou clamor. Então ela continua sendo fiel a suas origens, o que irrita o Vaticano. Mas ela não pode fazer outra coisa se quiser ter o mínimo de responsabilidade ética face à miséria na qual vive grande parte da humanidade. Não escutar este clamor é fazer-se socialmente irrelevante e ser simplesmente cínico. A teologia da libertação salva o cristinianismo deste cinismo vergonhoso. Jon Sobrino é um sobrevivente do massacre que dizimou toda sua comunidade de jesuitas em 1989 em El Salvador. É um dos teólogos mais respeitados da teologia mundial exatamente por sempre de novo propôr a urgência de pensar a fé a partir das vítimas e de conclamar a Igreja para que tome a sério seu serviço libertador para com os oprimidos do mundo. Como isso não está nas estratégias centrais do Vaticano e Jon tem boa acolhida por todas as partes, foi enquadrado e silenciado. Batem nele mas visam a Igreja latino-americana para que não tente retomar seus ideais formulados em Medellin (1968) com a libertação, em Puebla (1979) com a opção pelos pobres e em Santo Domingo (1992) com a inculturação nas culturas dos oprimidos.

Como se estabelece hoje a sua relação com a Igreja? Às vezes o senhor evita tratar de certas questões, por quê?

R. Depois que me autopromovi a leigo e foi aceito por Roma, nunca mais fui perturbado pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Minha relação, em termos de opção de vida, continua a mesma: sinto-me dentro da Igreja, como leigo, entretanto mais franciscano que romano. Evito abordar temas de Igreja porque considero que os grandes problemas hoje que movem a humanidadae têm pouco a ver com a Igreja-instituição como a questão ecológica, a devastação dos pobres, a atmosfera de guerra civil mundial, os fundamentalismos e o terrorismo e agora a incerteza quando ao futuro do Planeta ameaçado pelo aquecimento global e as mudanças climáticas inevitáveis. Esta é a verdadeira galáxia de problemas e não as questões, por vezes, ridículas e despistadoras, suscitadas por Roma.

Como se deu exatamente a guinada conservadora da Igreja Católica?

R. O aparato romano chamado Cúria, quer dizer, aquelas instituições responsáveis pela condução da Igreja universal nunca acolheram as reformas feitas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Elas foram derrotadas mas nunca se renderam. Conseguiram se aglutinar, ocupar os principais poderes centrais e impuseram o curso tradicional a toda a Igreja. Eles conseguiram fazer o Papa João Paulo II e agora Bento XVI. Criaram o seu exército de soldados fiéis que são a Opus Dei e outros movimentos conservadores como Communione e Liberazione e em geral os grupos carismáticos. Eles garantem a reprodução do modelo antigo, defasado do mundo contemporâneo.

O cardeal Ratzinger foi realmente o mentor dessa guinada?

R. O então Card. Ratzinger foi o intelectual orgânico desta guinada, o seu formulador e atacante central. Não sem razão disciplinou cerca de 140 teólogos e colocou sob severa vigilância as Igrejas que estão na periferia do mundo e tentam responder aos desafios das realidades conflitivas nas quais vivem. Criou-se o pensamento único na Igreja: o mesmo catecismo universal, o mesmo direito canônico para o pólo norte e para os trópicos, o mesmo rito romano ao qual se proibe qualquer inculturação, a mesma doutrina básica extraida dos pronunciamentos papais. Sem liberdade não é possível nenhuma criatividade. Dai a impressão velhista que este tipo de Igreja provoca e a enorme emigação de fiéis que no Brasil signfica 1% a cada ano.

Como está hoje a CNBB e qual é o seu papel atual? Ela é hoje uma entidade conservadora?

R. No pontificado passado ocorreu uma grande mediocrização dos episcopados do mundo inteiro. Para Roma, de fato, o único bispo é o Papa. Os demais bispos desaparecem à sua sombra. E os profetas foram silenciados ou morreram. Esta política de contenção afetou a CNBB que perdeu muito de seu elan. Mas conserva ainda uma reserva de progressismo, especialmente, nas questões sociais como se depreende pelas Campanhas da Fraternidade, pela iniciativa "Grito do Oprimido", pelas pastorais sociais como por terra, teto, saúde e as pastorais dos índios, dos negros e das mulheres marginalizadas. Aqui e acolá surgem vozes proféticas mas este não é o tom geral da CNBB. Ela tem demasidadamente os dois ouvidos voltados para Roma e menos para a realidade do povo crucificado. Mas nunca faltaram bispos progressistas e ligados à libertação.

A Teologia da Libertação ainda se mantém viva? Tem conseguido resistir?

R. A teologia da libertação continua viva naquelas igrejas que tomam a sério a opção pelos pobres e contra a pobreza e que acolhem o desafio que vem da injustiça social. Por isso é forte na América Latina, Africa e Asia. Mas não possui a visibilidade que possui antes porque não é mais tão polémica como um dia foi.

Onde ela ainda é forte e está mais presente?

R. Quando ocorreu o Forum Social Mundial em Porto Alegre há tres anos, houve uma semana antes o Forum Mundial da Teologia da Libertação. Ai estavam representantes, cerca de 300, de todos os Continentes e também do Primeiro Mundo. Ai se pode notar a vitalidade desta teologia. Se ela não tem muito poder, seguramente possui a hegemonia do discurso, pois sobre as grandes questões que afligem a humanidade sempre tem uma palavra a dizer, como por exemplo, sobre o tipo de globalização econômico-financeira que cria milhões e milhões de excluidos, sobre o pensamento único neo-liberal que ameaça a democracia, sobre o fundamentalismo e o terrorismo e sobre questões ambientais que agora põem em risco a sobrevivência da espécie humana.

Como o senhor recebeu o relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) de que o aquecimento é decorrência da ação humana e é praticamente irreversível?O senhor imaginava que a situação já havia atingido esse patamar?

R. Pertenço ao pequeno grupo que escreveu a Carta da Terra, iniciativa mundial animada por Michail Gobachev e alguns membros da ONU que desde 1992 até 2000 mobilizou mais de cem mil pessaas em 46 paises para saber o que se deveria fazer para salvar a Terra e a humanidade da sistemática agressão pelo sistema mundial de produção e consumo. Todos os cenários com os quais trabalhávamos indicavam o desastre que foi agora confirmado pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas. Estimo que os dados fornecidos que apontam para um irreversível aquecimento global com as ameaças aue implicam em termos de devastação da biodiversidade, riscos de dizimação de milhões de pessoas que não terão tempo para se adaptar nem para minorar os efeitos danosos das mudanças climáticas podem mudar o estado de consciência da humanidade. Agora temos que contar com a era das tribulações em todas as partes da Terra. Ou mudamos já agora nossos padrões de produção e consumo ou então poderemos conhecer o caminho já percorrido pelos dinossauros.

O senhor concorda que está havendo uma overdose de discussão sobre mudanças climáticas e que isso pode levar a uma banalização completa da preocupação ambiental ou acha que essa ampliação da audiência para esse tipo de questão é saudável?

R. Eu acho que se deu uma versão hollyoudiana ao fato no interesse da grande midia que lucra com esta dramatização. Mas o tempo do relógio corre contra nós. Se não fizermos nada e deixarmos as coisas correrem como até agora corriam, podemos ir ao encontro do imponderável e do inevitável e pôr em risco o futuro da espécie até sua completa desaparição. O fato é em si alarmante e exige uma nova responsabilidade coletiva. Antes importava proteger e cuidar e não ultrapassar o limite de suportabilidade da Terra. Agora se comprovou que já ultrapassamos o limite, em 25% da capacidade de reposição do sistema-Terra. Então temos que mudar radicalmente de paradigma civilizatório. Não podemos continuar no mesmo curso, pois ele nos conduz a um abismo dentro de poucos anos. A Terra poderá continuar sem nós.

Como o senhor vê a gestão do presidente Lula na área? Aprovação dos transgênicos e a transposição do São Francisco aparecem como duas das medidas que desagradam aos ambientalistas, mas que vem sendo encampadas, em algum grau, pelo governo Lula. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

R. Pessoalmente crio que o Presidente Lula possui um deficit considerável com referência à consciência ecológica. Ele é experimentado na relação capital versus trabalho, mas mostra insuficiências na área ambiental e ecológica em geral. Por isso o PAC não prevê nada específico na área ambiental. Apenas são pressupostas as medidas legais vigentes sempre que um projeto vai se implantar. Ele precisa da análise prévia de impacto ambiental e a aprovação do Ibama. Mas não há uma política específica, especilamente, com referência à preservação ecológica da Amazônia. Prevêem-se novas fronteiras agrícolas mas pouco ou nada se diz sobre o risco ambiental que elas comportam. Basta considerar os dados do Orçamento para este ano. O Ministério do Meio Ambiente continua a ter seus recursos cortados; o corte mais recente foi de R$212,7 milhões ou 32,7% pois caiu de R$651,2 milhões para R$438,5 milhões, pouco mais do que caberá ao Ministério do Turismo (R$400 milhões), menos do que terão o Esporte (R$643,9 milhões) ou a presidência da República (R$774,6 milhões), 13 vezes menos que a Defesa (R$5,82 bilhões). Exceção seja feita da Ministra Marina que luta ferozmente por uma nova concepção do desenvolvimento relacionada com o ambiente e até com um novo paradigma de civilização nos trópicos. Mas é praticamente voz profética no deserto dos que pensam obssessivamente apenas em crescimento.

Como vê a proliferação do etanol e do biodiesel? O senhor considera que isso pode levar o país a concentrar ainda mais produção agrícola em poucos produtos e dar mais fôlego para o agronegócio?

R. Eu vejo com preocupação. Procura-se uma alternativa à matriz energética para manter o mesmo padrão de consumo a que estamos acostumados. Este não é universalizável. Já se fizeram os cálculos. Se quiséssemos universalizar o bem estar material dos paises ricos, deveríamos ter à disposição outras três Terras iguais a nossa atual, coisa que é impossível. O triste é que não se prevê uma alternativa de modelo de sociedade menos energívora e dizimadora de recursos naturais não renováveis. Nesse sentido o memorando Brasil-Estados Unidos ou Bush-Lula contem sérios riscos de perpetuar a crise que por sua vez é responsável pelo aquecimento global. Há ainda o risco de que se roubem terras destinadas aos alimentos e às fibras, portanto, o estömago, para produzir etanol a fim de manter o sistema funconando, portanto, as máquinas. Que não ocorra o que aconteceu em São Paulo com a implantação nos anos 70 do Proálcool que gerou a expulsão das culturas de alimentos, encarecimento de preços dos produtos alimentícios e grande desemprego. Sabe-se que coisa semelhante já está ocorrendo agora em várias regiões de Minas Gerais.

Qual a sua visão de mundo atual? Quais valores lhe parecem mais importantes defender e e do ponto de vista de suas convicções quais foram perdendo espaço nos últimos anos? R. Vejo que estamos consolidando uma nova fase da história da Terra e da Humanidade que é a fase planetária. Depois da dispersão secular dos seres humanos por sobre as partes da Terra, agora estão voltando para o todo, para a única Casa Comum que o planeta Terra. Somos e nos sentimos uma espécie, a espécie humana sapiens e demens, inteligente e demente, formando a família humana com os mais diferentes filhos e filhas. Mas não estamos ainda preparados para esta nova situação. Continuamos vivendo sob o paradigma da divisão, do império de uns sobre outros e da compartimentação das experiências. Importa estarmos à altura da novidade que está se realizando. Agora é a idade de ferro da globalização sob a regência do econômico-financeiro. Este se regula apenas pela competição sem qualquer sentido de cooperação. Somente a competição poderá nos levar a um imenso impasse de falta de um centro articulador que se preocupa com o planeta e com seus habitantes como um todo. Por isso virá ainda ou se reforçará uma globalização política, ética e também espiritual. Eu pessoalmente vejo que precisamos de uma ética mínima que nos permita viver juntos, assentada em três virtudes básicas, a hospitalidade como direito e dever de todos, a convivência pacífica entre os mais diferentes povos e culturas, evitando assim o fundamentalismo e o terrorismo e por fim a comensalidade, quer dizer, poder sentar juntos ao redor da mesa para comer e beber da generosidade da natureza e sentirmo-nos de fato como familia humana. Estou seguro de que isso vai ocorrer um dia. Mas precisamos colocar estes fundamentos já agora para que a habitação inclua a todos não só os humanos mas todos os seres vivos que conosco participam desta aventura planetária no curto tempo que nos tocar viver por sobre a Terra.

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