sábado, 11 de março de 2006

A vitória da Vila Isabel e a unidade latinoamericana

Tiarajú Pablo

A vitória da escola de samba Unidos de Vila Isabel no carnaval carioca, ratificada na apuração da quarta-feira de cinzas, pegou muita gente de surpresa. Desbancando às favoritas Mangueira, Beija-Flor e a até a injustiçada Unidos da Tijuca, as notas e a aclamação popular premiaram aquela que em todo período pré-carnavalesco era tida apenas como “uma escola de tradição mas um pouco escondida”. Para muitos lutadores do povo, o tema sobre a integração latinoamericana chamou a atenção e empolgou mais pelo lado político que pelo lado sambístico. Certo é também que muita gente da esquerda só ficou sabendo do enredo após a vitória da Vila. Pois bem, meus queridos, como diria Noel Rosa, o poeta maior desse bairro cheio de encantos, “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”. E foi isso que fez. E quem pensa que a ajuda venezuelana politizou a escola, dando a entender que a Vila tivesse sido usada, como andaram falando por aí, é porque não sabe nada de samba, e nem procurou saber. Em 1980, em plena ditadura militar, a Vila Isabel, com um maravilhoso samba de Martinho da Vila, pregava aos quatro cantos e quatro ventos “a prisão sem tortura” num enredo que cantava os sonhos da humanidade. Em 1984, o enredo Pra Tudo se Acabar na Quarta Feira cantava a poesia e a dor de se viver no morro, de ser pobre num país tão rico, tendo a possibilidade de dar vazão a cacos de felicidade apenas no carnaval. Numa crescente, a escola em 1987 consegue o 5º lugar falando da lenda de Maíra, baseando-se na obra de Darcy Ribeiro para cantar uma das páginas mais belas da cultura indígena de nosso país. O samba de Martinho da Vila nesse carnaval até hoje é único. Inovador, o poeta fez um samba-enredo sem rimas, surpreendendo e colocando-se no pantheon dos insuperáveis. Em 1988 veio o ápice. No ano em que se comemorava o centenário da abolição da escravatura, o enredo “Kizomba, a festa da raça”, de Martinho da Vila apresentou a luta e resistência do povo africano escravizado, em congraçamento com todas as etnias e cores que conformam a raça humana. O samba de Luis Carlos da Vila é imortal. Todo em tom menor, sofrido e raivoso, muda de tonalidade para maior na chegada do refrão, como que pedindo paz e justiça, refrão que diz assim: “vem a lua de Luanda/para iluminar a rua/ nossa séde é nossa sede/ de que o apartheid se destrua”. A menção à séde fazia sentido, pois a escola não tinha um local de ensaio e preparava seu carnaval numa garagem de ônibus emprestada. Pra quem não sabe, a Unidos de Vila Isabel, sempre foi uma escola pobre, pé no chão, raçuda, bonita. Naquele ano apresentou-se cheia de palha e madeira, cantando o samba e evoluindo graciosa e cheia de vontade. Na simplicidade, em contraposição ao luxo das rivais, foi agraciada com seu primeiro titulo no ano do centenário. Pura Kizomba. Mas a saga politizada da Vila não parou por aí, em 1989, o enredo sobre a declaração universal dos direitos humanos acusava as promessas não cumpridas pelo iluminismo. Diz a letra: “a declaração universal/não é um sonho, temos que fazer cumprir/a justiça é cega mas enxerga quando quer/já está na hora de assumir”. Em 1990 clamou por reforma agrária, com o belíssimo enredo “Se esta terra fosse minha se esta terra”. A letra, épica, mostra a aventura dos deserdados da terra, mas não vou citá-la aqui, quem quiser que a procure e terá uma bela surpresa, assim como não citarei a letra do ano de 1992, quando a escola virou a história oficial do avesso com o enredo: “A Vila vê o ovo e põe as claras”, denunciando a matança indígena realizada pelos europeus, naquele que era o ano 500 do “descobrimento”. Tal ousadia custou caro, pois a escola ficou a uma posição do descenso. Em 1993 uma lenda africana foi o tema. Em 1994 o próprio bairro, e o samba é um dos mais bonitos da história do carnaval: “desperta Seu China/acorda Noel/pra ver a nossa escola/desse branco e azul do céu”. Em 1995, no enredo que homenageava o Rio Grande do Sul, a escola foi a única que alguma vez citou nominalmente o líder indígena Sepé Tiarajú, protetor da terra, como diz o samba. Como se vê, os enredos sociais da escola, não são de hoje e, diferentemente de outras, a Vila não foi nunca um pêndulo, pois coerência ideológica é o que menos se pode esperar de uma escola de samba. A Grande Rio, por exemplo, que em 1998 homenageou Luis Carlos Prestes (pouca gente lembra), em 2005 vendeu seu enredo para a Nestlé. A Beija-Flor que na década de 70 defendia os governos militares, em 2003 anunciava uma revolução popular num enredo sobre a fome. E por aí vai. Estes são apenas dois exemplos, mas poderiam ser trinta, e com as mais diferentes escolas de samba. Mas a Vila não, a Vila sempre teve uma sensatez banhada pelas dificuldades que sempre enfrentou. Em 2000, com outro enredo sobre os índios, a escola caiu do grupo especial, para onde só voltou em 2005, para já no ano seguinte, este 2006 que atravessamos, ser a legitima campeã. O enredo sobre a unidade latinoamericana é na verdade uma continuidade dos inúmeros enredos sobre negros e índios que a escola sempre defendeu. Enfim, explorados em geral. O casamento desta vereda social histórica da escola com a experiência venezuelana atual não é mero acaso. Ambas, Vila e Venezuela, têm no povo sua figura principal, artífice das mudanças e construtor da história. Sempre à frente em suas iniciativas políticas, o governo da Venezuela deixa a oposição em polvorosa, perdida, seja no Brasil, na Venezuela ou onde quer que for. Pra se contrapor, ou tentar acompanhar, estes terão que fundar uma Unidos dos Esquálidos, mas acredito que a falta de malemolência e a distância dos instrumentos musicais fará essa escola desafinar e atravessar o samba. Assim como a Vila propôs a união das cores, a Venezuela propõe a união dos povos latinoamericanos. E ambas juntas demonstram que por meio da cultura popular, do saber imortal do samba, neste caso, latinoamerisamba, é mais fácil passar a mensagem, tocar mentes e corações, muito mais que livros, discursos, etc, da mesma forma que se aproveita da brecha deixada pela imagem televisiva, ainda que esta tente boicotar. Agora, no transporte público, nas esquinas e nos comentários do dia-a-dia, o povo já fala de Bolívar com mais propriedade, na linguagem que lhe é própria, porque a Vila Isabel com o samba, e Carlitos Tevez com o futebol, fizeram muito, mas muito mais pela integração latinoamericana que acordos comerciais e militontos verborrágicos.

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